Eu vivia uma vida despreocupada, vivia atrás do meu avô descobrindo entre as suas mãos os trabalhos mais maravilhosos que alguma vez conheci. O meu avô pegava na enxada e numa saca de serapilheira que colocava às costas e lá seguia ele pelos caminhos de terra batida entre pedras e poeira e muitas vezes lama, na direcção da terra, aqui nós chamamos terra ao espaço cultivado e de nossa pertença. Mas terra pode ser muita coisa desde o planeta à massa castanha que eu adorava colocar na boca e comer quando criança…e da qual, mais tarde, gostava de misturar com água para fazer café a fingir. O meu avô tinha o trabalho da terra para fazer e dar de comer à esposa, a minha avó, às filhas e netas. O meu avô adorava ter tido filhos e netos do sexo masculino, mas nem chegou a conhecer os dois bisnetos. Para além de ser um excelente pai e avô, sabia olhar o céu e adivinhar se no outro dia ia estar calor ou frio, sabia olhar a lua e determinar o que cultivar, sabia quando o ano era bom para produzir vinho com grau, assim como sabia quando vinha, dizia ele “doenças nos astros e moléstia para a vinha”.
Depois de ter pulverizado a vinha de cima a baixo com a ajuda da minha irmã que carregava com canecos de água, naquela altura todas ajudavam, e nem se ouvia falar de trabalho infantil, cada uma fazia o que podia para ajudar a família, também não se ouvia falar de água canalizada, e os canecos eram ferramenta indispensável em qualquer casa da aldeia. A água era de todos sem preço, afinal ela cai do céu. Muitas vezes ía para debaixo das videiras ou para cima das macieiras descansar, enquanto o avô na sua azáfama diária, corria vinha acima, vinha abaixo e chegava cansado ao fim do dia, à mesa onde a avó colocava a comida. A comida que me lembro da avó fazer e que eu adorava era o coelho guisado em tacho de barro, ao lume provocado pelas brasas de uma fornalha improvisada na chaminé do telheiro do forno.
O avô engarrafava o vinho recorrendo a uma ferramenta artesanal em madeira que empurrava as rolhas para dentro do gargalo da garrafa de forma a ficar o vinho selado. Todo este processo me fascinava assim como a prévia lavagem das garrafas com escovilhão e sal, tudo era feito no quintal da “Casa da Professora”, é que o meu avô alugava a casa às professoras que eram colocadas na escola primária da aldeia. Como eu me orgulhava de partilhar pormenores da vida particular das professoras. Lembro-me da Dona Lurdes uma senhora dos seus 50 ou 60 anos que não se escusava a afirmar que velhos eram os trapos, foi ela que me ensinou a juntar as letras e comecei aos cinco anos a ler o jornal, para quem aprendeu rápido e ia para as aulas esperar que os colegas passassem a lição, fui assim aperfeiçoando o acto de esperar e dar o conhecimento e partilhá-lo com os meus amigos…que se prolongou vida fora até aos dias de hoje em que escrevo estas memórias. Voltando ao quintal da “Casa da Professora”, era também ali que o meu avô assava bacalhau ao domingo e fazia o delicioso torricado com pão torrado, alho e azeite que extraía das azeitonas produzidas pelas Oliveiras da terra. O bacalhau, vinha de Lisboa, embrulhado em papel, bem seco e salgado, de qualidade. Pois o meu avô, embora pobre afirmava: Quem se veste de ruim pano, veste-se duas vezes ao ano. Gostava pois de tudo o que tivesse qualidade, desde a comida, ao calçado e ao vestuário. A qualidade implicava gastar dinheiro e foi o meu avô quem primeiro me pôs em contacto com duas moedas, uma de cinquenta centavos, castanha e grande com uma espiga desenhada e outra mais pequena e de cor prateada com números inscritos. Tudo aconteceu por eu ter apanhado um balde pequeno de azeitonas.
Escolhi a moeda maior e esteticamente mais bonita mas de menor valor monetário, os cinquenta centavos e tive assim o meu primeiro ordenado escolhido. As minhas escolhas ao longo da vida sempre se manifestaram desta forma, nunca foram pela escolha do maior lucro mas escolhas através dos sentimentos.
Tive o que escolhi da vida…enfim, sei lá, o que é ser adulto? Alguém sabe?
Será que todos os adultos ficam resmungões e a correr de um lado para o outro sem tempo para os filhos, a pensar no dinheiro que vão ganhar para ter bens materiais, umas férias em locais paradisíacos descurando as viagens que se fazem com a imaginação e que cada um de vós, crianças sabe fazer tão bem…meus pequenos têm de pensar que um dia vão ser adultos, e depois vão precisar de se alimentar e de alimentar a vossa família e de ter um local para se abrigarem de noite, precisam de tomar um banho e comprar pasta de dentes…e então já entenderam os adultos e as suas correrias.
Feliz de mim que tive um avô que não precisava de correr para nos alimentar e dar de tudo, mas pensem o trabalho do campo é duro…desgastante, o meu avô morreu muito cedo, perdemos a conta á quantidade de enfartes do miocárdio que teve, tinha sessenta e tal quando me deixou, somos nada, só somos o que podemos fazer ou dar, a dádiva ao outro e a partilha é o que faz de nós humanos e adultos. É claro que muitos crescidos não são adultos, e muitas vezes toda a fase da vida é passada sem atingir a idade adulta. O humano é o ser que mais tempo demora a crescer, no entanto dizem que por possuirmos linguagem e por comunicarmos de forma educada somos muito evoluídos, já pensaram nisso? Qual a vossa opinião?
O que é evolução para você?
Na escola não evolui de forma gradual, passando duas classes num só ano. Embaraço, ser distinguida entre os colegas e as invejas que tal suscitou…como as crianças podem sentir tal? Fará parte da natureza humana?… Humilhada no recreio por uma colega que decidiu ser a nossa Professora no intervalo… que com uma cana batia quando nos queria ver caladas, coisas de criança mal formada em casa, para ter esse tipo de comportamento na escola…eu não fiquei quieta e para me defender a mim e a uma amiga levantei-me e desafiei-a…a não fazer mais o que estava a fazer…claro que foi precisa a intervenção da professora, que acalmou os ânimos. Hoje chamar-se-ia bulling, naquela altura foi apenas uma zanga de crianças em que os pais foram chamados à presença da Professora e em conjunto, tudo resolveram. Era no recreio que se passavam todas as estórias interessantes, desde brincar só com uns pregos e linhas, inventando teares até, saltar em cima de madeiras que ficavam das festas da aldeia ali no recreio da escola por tempo indeterminado.
Ou ficava olhando os rapazes jogar a bola e pensando nos prós e contras que cada um tinha, para futuro pai dos meus imaginados seis filhos. Sim porque o meu sonho era encontrar o pai para os meus futuros seis filhos e para isso precisava estudar para encontrar um pai inteligente e esperto com os gostos semelhantes aos meus…eu não sabia que eras tu…e que não era preciso estudar para te encontrar e que o estudo só serviria como ferramenta de vida para ter um emprego melhor e pagar as despesas contigo. Ah! Se eu soubesse…que a vida era assim e bem mais simples do que a minha cabecita a previa e imaginava fazendo futurologia…dizendo a palavra nunca, que não deve ser dita…”Nunca digas desta água não beberei”.
Mil tormentos padeci, qual azeitona no lagar, ao longo desta vida até estar aqui a um canto, num sossego em paz, sem conflitos, as telas assumiram mil cores e a vida também…a preta e branco às vezes, outras das cores do arco-íris também denominado pelo meu avô e pessoas da aldeia, de arco da velha.
Os avós devem ser ouvidos e respeitados, o meu avô queria ver-me crescida e teve pena de tal não ser possível…quando ele me dizia isto, eu ficava a pensar, até que entendi o conceito de morte quando ele se foi embora. Aos meus quinze anos o meu avô morreu após grande sofrimento em silêncio, como eu amava o meu avô, os olhos, o sorriso, as mãos com calos, onde eu passava creme para ficarem mais macias, quando ele regressava do campo. Só o meu avô me dava carinhos e me ensinava como ver o tempo nas nuvens e o céu.
Aprendi a olhar o céu com o meu avô e a pisar o chão e as uvas também com ele, ensinou-me a sonhar e ensinou-me a realidade, quando o perdi, o mundo desabou…Ainda hoje guardei os momentos bons e divertidos com o meu avô num cantinho do meu pensamento e a imagem dele a sorrir. Escrevo-os agora para vocês lerem e um dia pensarem em escrever sobre quem amam…afinal único sentimento que me moveu e move ao longo de toda a vida.
Aprendi a olhar o céu e a sonhar, estabeleci objectivos e não contei os meus sonhos a ninguém. Não deixei de sonhar toda a vida, prisioneira de um ambiente rural, tive contacto com um País para mim maravilhoso, país da europa que hoje é considerado o melhor país da Europa para viver. Aos quinze anos viajei de avião só e uma multidão desconhecida, num voo nunca imaginado de regresso para o meu país, do meu país para lá fui de carro com um casal idoso, tinham idade para ser meus avós, mas não eram, foram também um pouco pais, levei Agatha Christie para ler, treinei o inglês e aprendi alemão, umas palavritas desta última língua. Inteirei-me pela primeira vez de uma guerra bem real entre alemães e ingleses, de uma guerra sem sentido e ouvi testemunhos reais de uma senhora que se teve de abrigar nos túneis subterrâneos, quando criança par fugir ao ataque dos ingleses sobre a sua cidade, impressionou-me muito…os testemunhos dela. Aprendi com este casal o que era schnitzel e wurst, maravilhada por Hawai salat, as bananas eram a minha comida de recurso quando não gostava da sopa de espargos ou de porco com ananás ou ainda quando as kartoffle não me sabiam bem…enfim, vivi um mês virada para o estômago, como qualquer Português característico. Pela primeira vez vesti um vestido de senhora, que me ficava muito mal e usei mala…um pouco tardiamente. Sociabilizei na piscina de Wiesebaden, piscina de água termal, conheci restaurantes e pessoas interessantes, aprendi a jogar Kägel e aprendi a jogar canasta com amigas. Conversava em Inglês frequentemente e aproveitei para desenhar. Foram-me oferecidos desenhos da cidade anteriores à guerra, e visitei os monumentos da cidade e as igrejas destruídas na guerra. O rio Rhein foi percorrido nas suas margens, dei de comida aos patos, passei de bicicleta em ciclovia da cidade, coisa que nem se falava em Portugal. Visitei o zoo, que me fascinou, pelo respeito perante os animais e andei de teleférico na floresta. E continuei a sonhar… até que aos dezassete entrei para a faculdade, felicidade das felicidades, ali ia encontrar certamente o pai para os meus seis filhos…, ingenuidade pura, encontrei alguém que não me merecia e desde aí, qual azeitona no lagar…espremida e envenenada, sofrida e torturada, lá lutei e terminei biologia em 2000. Trabalhei, entretanto sempre a dar …conhecimento a quem mo solicitava, espontaneamente e de forma voluntária. Qual samaritana descalça…que deu a água a quem tinha sede. Vida vivida em vão e sofrida, fui pintando e desenhando ao longo da vida, para me manter viva, fazendo e praticando os trabalhos manuais e ensinando, professora não contratada pelo ministério satisfeita por desempenhar as funções de educadora de uma forma gratuita e espontânea, esteticamente correta, tal como aquela moeda que escolhi sentimentalmente, o meu primeiro ordenado quando criança. Sem sucesso social, mas feliz pessoalmente, sem riqueza monetária, mas rica em sentimentos que nutro pela natureza e por aspetos humanos específicos. Árvore silenciosa que entre palavras escritas se vai revelando, numa escuridão que termina na razão de ser quem sou. Obrigada, avô, um abraço e Beijos, neste silêncio que tu conheces.
Elsa Pereira
Sem comentários:
Enviar um comentário